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ESBOÇO PARA UMA LEITURA DO MESMO

 

O mesmo tem uma longa história. E aproximarmo-nos dela com poucas palavras é trabalho árduo, deixando aqui e ali buracos, espaços por preencher, desvios de sentidos. É, por assim dizer, um risco. Mas arrisquemo-nos, mesmo assim.
E por onde começar? Não se começa, já dizia Deleuze, parte-se pelo meio, porque encontramo-nos desde logo entre, no meio, de onde se pode procurar o princípio enquanto avançamos para qualquer coisa. Caminha-se sempre em dois sentidos, portanto. Nenhum vai dar ao mesmo.
O mesmo afigura-se-nos, primeiro, como expressão de certeza e de relação. Dizer mesmo é afirmar por meio da certeza inequívoca, isto é, dar ou conduzir a um único sentido, um único significado; dizer mesmo, entre duas coisas semelhantes ou dissemelhantes, é estabelecer, ou procurar erigir, uma identidade comum. O mesmo é, colocado então nestes termos, objecto de força do bom senso e do senso comum. Ele é mesmo do lado do universal, da regulamentação por igual, da equivalência, enquanto nós nos dirigimos para a singularidade, tal como a arte. A arte, ao ser sendo, procura partilhar com quem vê um universal a partir da sua própria singularidade. O Homem, ao ser sendo, procura partilhar-se regulando-se pelo universal a partir da sua própria singularidade. Foge-se e não se escapa ao mesmo.
Dizer mesmo é igualmente redução à identidade unívoca, a um Uno. “Eu nunca serei outro, apenas e sempre eu, eu, eu”, mas na verdade serei sempre mais do que eu próprio. É que a différance começa em nós, há sempre jogo de diferenças no espaço e no tempo que me difere de mim próprio. A repetição não traz o mesmo mas a diferença. Nada foge à diferença que se escreve no mesmo.
E no entanto o mesmo volta, somos sempre conduzidos para o mesmo, porque mais do que nunca, hoje, a manipulação do simulacro constrói o mesmo pela via negativa. A história do mesmo sofreu uma volta em feedback. Se, seguindo uma leitura de Foucault, os dispositivos de controlo e de subjectivação fomentavam o mesmo (seguindo os princípios de identidade, os universais metafísicos, os poderes, etc.); se, seguindo os pensadores da suspeita, se rasuram as linhas de força do mesmo, principalmente com a “morte de Deus”; e se, tal como foi vindo a ser apropriada a filosofia da diferença, como forma de revolta se tem vindo a relevar intensamente a unicidade de cada ser, a sua singularidade, destruindo o mesmo pela relativização (o tempo não é o mesmo, tal como os conceitos de Belo e Bem, etc.) e pela afirmação do novo, somos inevitavelmente levados a pensar que ao mesmo nunca se escapou, ao mesmo somos levados, porque não há maior ilusão que a nossa, de agora, individualidade, a nossa unicidade, a nossa subjectividade – oh, sou tão único com os meus ténis Nike (ou outra marca qualquer), sou tão único com o meu carro, o meu telemóvel, o meu Mac, os meus óculos vintage, o meu blog, facebook, twitter, os meus brincos, as minhas tatuagens, o meu cabelo, a minha opinião citacionista, etc., etc., etc. A máquina funciona bem, muito bem mesmo. Se as velhas formas do mesmo já não funcionam, apropriemo-nos das linhas de fuga e refaçamos o mesmo pelo elogio da diferença.
                                                                                                Fernando Machado Silva 2010

 

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